Opera Barroca

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quinta-feira, 14 de maio de 2009

Poemas de Cesário Verde; propostas de olhares

“Num Bairro Moderno”

No poema Num Bairro Moderno, encontramos o exemplo de uma das temáticas predominantes da poesia de Cesário Verde, a reportagem do quotidiano. 
Quanto ao asunto do poema, diremos que o poeta, deambulando,  percorre o bairro, enquanto se dirige para o emprego. 
Olhando sobre as ideias principais do texto, escontramos o eu poético a reportar o quotidiano da cidade: «Eu descia, / Sem muita pressa, para o meu emprego» (est. III, vv. 2-3). Este poema apresenta características da narrativa, destacando-se a subjectividade do narrador, bem como a onstrução de personagens que têm um papel preponderante no desenvolvimento do poema.
Logo no início do poema, a modernidade insinua-se com a marcação do tempo; «Dez horas da manhã». De seguida, é o seu olhar de repórter que vai "focando" vários instantes e impressões da vida citadina: a "casa apalaçada", os "jardins" que se estendem ao longo da "larga rua macadamizada" (est. I), os "rez-de-chaussée" cujas persianas se abrem, deixando ver pormenores do interior das casas - "quartos estucados", "papéis pintados", "Reluzem, num almoço, as porcelanas" (est. II). Tudo faz transparecer o bem-estar, o conforto que se vive neste bairro moderno e burguês; «Como é saudável ter o seu conchego / E a sua vida fácil!» Esta ideia exclamativa de conforto é sugerida não só pelas referências objectivas como pelas metáforas e sinestesias: «com brancuras quentes», «Rez-de-chaussée repousam sossegados» (hipálage, pois transfere para as casas o ambiente de tranquilidade do seu interior) acentuado pelo pleonasmo do verbo «repousar» e do adjectivo «sossegado», «Reluzem, num almoço, as porcelanas» (note-se o verbo impressivo). O brilho que emana das loiças é um elemento que confere um visualismo impressionista a esta descrição através da sinestesia visual. O motivo sinestésico do olhar domina a composição: «Matizam», «fere a vista», «Reluzem», «Notei», «examinei-a», são elementos lexicais que nos remetem para a percepção visual, inscrita no poema.

Nas estrofes IV e V o poeta refere-se à vendedeira como se o seu olhar se fixasse sobre uma imagem da qual o poeta destaca aquilo que visualmente o impressiona - «uma rapariga / Que no xadrez marmóreo duma escada, / como um retalho de horta aglomerada, / Pousara, ajoelhando, a sua giga». Mais uma vez acentua o visualismo pelos forte contraste sugerido entre o branco e o negro dispostos em xadrez e o colorido das frutas e legumes. Ainda na quinta estrofe é acrescentada outra sinestesia, o som, que vem completar o quadro: «ressoam-lhe os tamancos»

Na oitava estrofe a associação de sensações, sinestesias, é o processo através do qual o poeta transmite a sua visão impressionista da realidade: «Bóiam aromas, fumos de cozinha» -olfacto; «Com a cabaz às costas, e vergando, / Sobem padeiros, claros de farinha» - visão; «E às portas, uma ou outra campaínha / Toca, frenética, - hipálage - de vez em quando» -audição.

Os «padeiros», a «regateira» são tipos sociais, qual personagens narrativas, característicos do espaço urbano descrito. Note-se a gente do povo, contrastando com a imagem elegante e requintada do bairro burguês. A vendedeira, frágil, é obrigada a um trabalho pesado, fazendo recair sobre ela a atenção do poeta: «pequenina» (est. IV); «esguedelhada, feia»; «bracinhos brancos» (est. V); «magra»; «enfezadita» (est. XIX); «rota» (est. IV), «os tamancos»; «abre-se-lhe o algodão azul da meia» (est. V); «na sua chita» (est. XIX). Esta personagem é-nos apresentada, realçando a sua debilidade e fragilidade, com recurso aos diminutivos, o que acentua o peso da opressão de que é vítima. Esta mesma ideia é sugerida nas expressões que relatam os movimentos e gestos da rapariga através da expressividade dos verbos: «ajoelhando» (est. IV); «se curva»; «pendurando» (est. V); «Nós levantámos todo aquele peso / Que ao chão de pedra resistia preso / Com um enorme esforço muscular» (est. XIV); «Carregam sobre a pobre caminhante» (est. XX). Recaindo sobre ela a simpatia do sujeito poético.

A subjectividade do poeta está também presente quando se refere ao criado, outro tipo social, que «do patamar», em atitude altiva, «muito descansado» «Atira um cobre ignóbil», hipálage, integrando deste modo no poema a crítica à desigualdade e injustiça social. O que leva o sujeito poético a comungar com ela do mesmo esforço, numa solidariedade com a sua condição.
O sujeito poético, quanto aos espaços, não se limita a descrever lugares e a colocar-lhes personagens. A descrição é impressionista e aos carácteres descritos estão associados o seu estado psicológico. A título de exemplo, tomemos a terceira estrofe. O sujeito poético, para além de comentar o que vê, capta a impressão do momento; «quase sempre chega / Com as tonturas de uma apoplexia», mostra-se «contagiado» pela força interior da rapariga: «Duma desgraça alegre que me incita» (est. XIX). No entanto, esse impressionismo ganha mais preponderância, como que introduzindo uma outra parte do texto, mais subjectiva, a partir da estrofe sete: «Subitamente - que visão de artista! - / Se eu transformasse os simples vegetais, / A luz do sol, o intenso colorista, / Num ser humano que se mova e exista / Cheio de belas proporções carnais?!» (est. VII). Recorrendo à imaginação, o sujeito transfigura poeticamente a realidade exterior, estabelecendo associações entre "os simples vegetais" e partes de um corpo humano. Os verbos utilizados na estrofe nove apontam precisamente para essa reconstrução do real elaborada mediante a fantasia: «recompunha»; «Achava»; «Descobria». Simultaneamente, o tempo verbal muda do pretérito imperfeito, tempo de descrição, o showing, para o presente o indicativo, o contar, o telling; «São» (est. X). Deste modo, assistimos de imediato ao acto de imaginar, reelaborando a realidade, num prenúncio de surrealismo.
Esta nova visão do real, resultado da criação imaginativa do poeta, exprime-se de contornos plásticos numa explosão de formas, cores numa associação aos frutos e vegetais.
Para concluir, saliente-se a tomada de posição do sujeito poético sobre a condição humana e as desigualdades sociais que a sociedade, da qual ele é testemunha, encerra em si numa premonição da modernidade.

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